domingo, 12 de junho de 2011

Que fim levou Judas?


A CARIDADE E A JUSTIÇA

Esse é um dos mais poderosos poemas que conheço, obra de Guerra Junqueiro. Abílio Manuel Guerra Junqueiro (Cintra 1850 –  Lisboa 1923) foi bacharel, funcionário público, deputado, jornalista e poeta. Foi o mais popular poeta de sua época, escrevendo panfletos que ajudaram a criar o ambiente revolucionário que conduziu a república em Portugal.


No topo do calvário erguia-se uma cruz,
E pregado sobre ela o corpo de Jesus.
Noite sinistra e má. Nuvens esverdeadas
Corriam pelo ar como grandes manadas de búfalos.


A Lua, ensangüentada e fria,
Triste como um soluço imenso de Maria,
Lançava sobre a paz das coisas naturais
A merencória luz feita de brancos ais.



As árvores que outrora em dias de calor
Abrigaram Jesus, cheias de mágoa e dor,

Sonhavam, na mudez hercúlea dos heróis.
Deixaram de cantar todos os rouxinóis.


Um silêncio pesado amortalhava o mundo.
Unicamente ao longe o velho mar profundo
Descantava chorando os salmos da agonia.
Jesus, quase a expirar, cheio de dor, sorria.


Os abutres cruéis pairavam lentamente
A farejar-lhe o corpo; às vezes, de repente,
Uma nuvem toldava a face do luar,
E um clarão de gangrena, estranho, singular,
Lançava sob a cruz uns tons esverdeados.


Crocitavam ao longe os corvos esfaimados.
Mas passado um instante a Lua branca e pura,
Irrompia outra vez da grande névoa escura,
E inundavam-se então as chagas de Jesus
Nas pulverizações balsâmicas da luz.



No momento em que havia a grande escuridão
Cristo sentiu alguém aproximar-se, e então olhou e viu surgir, no horror das trevas mudas, o covarde perfil sacrílego de Judas.
O traidor, contemplando o olhar do Nazareno,
Tão cheio de desdém, tão nobre, tão sereno,
Convulso de terror, fugiu...
Mas nesse instante
Surgiu-lhe frente a frente um vulto de gigante,
Que bradou:
-É chegado enfim o teu castigo!
O traidor teve medo e balbuciou:
     -Amigo, que pretendes de mim? Dize, por quem esperas?        Quem és tu?

-“O Remorso, um caçador de feras
Disse o gigante. Eu ando há mais de seis mil anos
A caçar pelo mundo as almas dos tiranos, do traidor, do ladrão, do vil, do celerado;
E depois de as prender tenho-as encarcerado
Na enormíssima jaula atroz da expiação.


E quando eu entro ali na imensa confusão
De tigres, de leões, d’abutres, de chacais,
De rugidos febris e de gritos bestiais,
Fica tudo a tremer, quieto de horror e espanto:


- Cai baixa a pupila e vai deitar-se a um canto.
E quando em suma algum dos monstros quer lutar
Azorrago-o com a luz febril do meu olhar,
Dando-lhe um pontapé, como num cão mendigo.
Já sabes quem eu sou, Judas; anda comigo!”

Como um preso que quer comprar um carcereiro,
Judas tirou do manto a bolsa de dinheiro,
Dizendo-lhe:
-Aqui tens, e deixa-me partir...



O gigante fitou-o e começou a rir.
Houve um grande silêncio. O infame Iscariote,
Como um negro que vê a ponta dum chicote, tremia.


Finalmente o vulto respondeu:
“Judas, podes guardar esse dinheiro; é teu.
O ouro da traição pertence-lhe ao traidor,
Como o riso à inocência e o aroma à flor.




Esse ouro é para ti o eterno pesadelo.
Oh! Guarda-o, guarda-o bem, que eu quero derretê-lo,
E lançar-to, gota a gota, inexoravelmente,
Em cima da consciência, a pútrida, a execrável!



Com ele hei de fundir a algema inquebrantável,
A grilheta que a tua esquálida memória
Trará, arrastará pelas galés da História,
Durante a eternidade ilimitada e calma.


Essa bolsa que aí tens é o cancro da tua alma:
Já se agarrou a ti, ligou-se ao criminoso,
Como a lepra nojenta ao peito do leproso,
Como o ímã ao ferro e o verme à podridão.


Não poderás jamais largá-la da tua mão!
És traidor, assassino, hipócrita, perjuro;
A tua alma lançada em cima dum monturo
Faria nódoa. É tudo que há de mais vil,
Desde o ventre do sapo à baba do réptil.


Sai da existência! Dize à sombra que te acoite.
Monstro, procura a paz! Verme, procura a noite!
Que o Sol não veja mais um único momento
O teu olhar oblíquo e o teu perfil nojento.


Esse crime, bandido, é um crime que profana
Todas as grandes leis da consciência humana,
Todas as grandes leis da vida universal.
Esconde-te na morte, assim como um chacal
No seu covil.


Adeus, causas-me nojo e asco.
Deixo dentro de ti, Judas, o teu carrasco!
És livre; adeus.


Já brilha o astro matutino,
E eu, caçador de feras, cumprindo o meu destino,
Continuarei caçando os javalis nos matos.”
E dito isto, partiu a procurar Pilatos.

Vinha rompendo ao longe a fresca madrugada
Judas, ficando só, meteu-se pela estrada,
Caminhando ligeiro, impávido, terrível,
Como um homem que leva um fim imprescritível,


Uma idéia qualquer, heróica e sobranceira;
De repente estacou. Havia uma figueira
Projetando na estrada a larga sombra escura;
Judas, desenrolando a corda da cintura,
Subiu acima, atou-a a um ramo vigoroso,
Dando um laço à garganta. 


O seu olhar odioso
Tinha nesse momento um brilho diamantino,
Reto como um juiz, forte como um destino.
Nisto ecoou através do negro Céu profundo
A voz celestial de Jesus moribundo,
Que lhe disse:


- “Traidor, concedo-te o perdão
Além de meu carrasco és ainda o meu irmão.
Pregaste-me na cruz é o mesmo, fica em paz,
Eu costumo esquecer o mal que alguém me faz.
Eu tenho até prazer, bem vês, no sacrifício.
Não te cause remorso o meu atroz suplício,
Estes golpes cruéis, estas horríveis dores;
As chagas para mim são outras tantas flores!”


Judas fitou ao longe os cerros do calvário,
E, erguendo-se viril, soberbo, extraordinário,
Exclamou:


- “Não aceito a tua compaixão.
A Justiça dos bons consiste no perdão
Um justo não perdoa. A justiça é implacável,
A minha ação é infame, hedionda, miserável;
Preguei-te nessa cruz, vendi-te aos Fariseus
Pois bem, sendo eu um monstro e sendo tu um Deus,
Vais ver como esse monstro, ó pobre Cristo nu,
É maior do que Deus, mais justo do que tu;
A tua caridade humanitária e doce,
Eu prefiro o dever terrível!”
E enforcou-se. "

 


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