terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Será culpa de Adão?


Amigos, recebi por e-mail e resolvi repassar. Pode ser um desabafo e pode ser palavras para descrever a realidade da alienação e subversão de valores da sociedade.
Vale repletir!!!

 O pecado de Adão 

A tradição cristã atribui ao primeiro homem a responsabilidade sobre a concretização do pecado e, como conseqüência, a expulsão do paraíso. Se não fosse pela curiosidade de Adão, atiçada por Eva, jamais conheceríamos o pecado ou tudo que ele representa: sofrimento, angústia, dor. Mas por que retornar à origem da humanidade? Porque ironicamente Adão é o nome do mais novo bode expiatório da Saúde Pública brasileira, o inimigo público número 1. Para os que ainda não captaram vou resumir: na véspera do Natal uma menina foi vítima de uma bala perdida que atingiu sua cabeça, foi levada ao Hospital Municipal Salgado Filho, onde foi diagnosticada a lesão, mas o neurocirurgião escalado não comparecera ao plantão, faltou. A menina ficou aguardando na unidade pela chegada do especialista da equipe seguinte, perdeu-se 8 horas em um paciente com lesão neurológica. O caso ganhou a imprensa e todos os dedos apontam para o Dr. Adão, como podemos observar pelas manchetes de hoje: "Morre a menina que ficou oito horas esperando atendimento", "Diagnosticada morte cerebral de menina vítima de médico que faltou o plantão". Enquanto a opinião pública se dá por satisfeita por ter encontrado o culpado, vejo neste caso claramente o jogo dos sete erros da Saúde Pública, a saber:

1. O próprio Dr. Adão que se expôs a este tipo de situação ao optar por faltar ao plantão errou gravemente. Observe-se, no entanto que ele não infringiu a lei, apenas exerceu o direito de qualquer empregado: faltar. Um empregado pode faltar ao emprego quando quiser, haja vista que por ocasião da disputa do título mundial de futebol pelo Corinthians diversas pessoas foram entrevistadas afirmando que faltariam o emprego para acompanhar o time do coração (o curioso é que em nenhum destes casos a imprensa deu conotação negativa a este comportamento como fez com o neurocirurgião). O empregado que falta está sujeito a diversas conseqüências, aparecer como vilão na imprensa, no meu modo de ver é apenas uma delas.

2. O chefe do plantão errou de forma ainda mais grave já que sua equipe atendeu um paciente com grave traumatismo cranioencefálico e, na impossibilidade de dar na unidade o tratamento necessário, não solicitou transferência para uma unidade que estivesse apta a este atendimento, aqui podemos ver fortes indícios de omissão ou negligência. A imprensa tem dado tanta atenção à falta do Dr. Adão que não informa se houve a solicitação para a remoção da menina. Se houve o chefe cumpriu com seu dever e jogou a bomba para a central de regulação e para as secretarias municipal e estadual de saúde.

3. A secretaria municipal de saúde errou ao não cumprir a resolução 100 do CREMERJ que determina a necessidade de 02 neurocirurgiões nos plantões em emergências de grande porte. Esta exigência não é descabida e muito menos corporativista como afirmou o prefeito Eduardo Paes. Imagine que o Dr. Adão estivesse em seu posto no dia 24, que tivesse avaliado a criança e indicado a cirurgia, quem seria seu auxiliar? Teria de operá-la sozinho? E se chegasse outro paciente em condições semelhantes? E se ele passasse mal durante a cirurgia, se enfartasse, quem terminaria o procedimento? O prefeito foi especialmente infeliz ao comentar esta resolução porque disse “... não adianta vir com o papo corporativista que precisa de dois (neurocirurgiões). Não precisa de nada, ele tem de ir ao plantão..." ato falho ele revelou o que pensa sobre os hospitais de emergência sob sua administração "não precisa de nada". Não é verdade, como podemos observar. Equipes completas são mais eficientes, sofrem menor desgaste e podem atender de forma mais adequada à população. Este é o teor da resolução do Conselho.

4. O SUS, em sua precária forma de organização, errou porque não é capaz de prestar de forma 100% adequada o atendimento pré-hospitalar, se este atendimento fosse adequado os pais teriam acionado o SAMU, que chegaria rapidamente, daria o primeiro atendimento e levaria a criança a um hospital que pudesse dar-lhe o melhor atendimento. Funciona desta forma em todo o mundo, aqui no Brasil o SAMU é apenas um outdoor do governo, mesmo quando faz o primeiro atendimento de forma ágil não consegue ter um relacionamento minimamente adequado com a rede objetivando a melhor destinação do paciente.

5. O chefe do serviço de neurocirurgia do Salgado Filho, supostamente avisado previamente da ausência do seu subordinado, por não ter antecipado o problema, ou por não ter resolvido o ocorrido. Se um plantonista falta, o chefe deve ser contactado, e na ausência de um substituto para o faltoso, ele próprio deve assumir o plantão. Existe aí mais um aspecto do caso, como exigir que o chefe tenha tantas responsabilidades sem uma contrapartida à altura? Na maior parte dos serviços públicos a gratificação pela chefia do serviço não atinge R$100,00! Novamente, o setor público não se organiza no macro e nem no micro. As esferas federal, estadual e municipal não se relacionam, os serviços dentro destas unidades não se relacionam e os indivíduos dentro dos serviços não se relacionam. Desta forma, qualquer êxito do sistema de saúde só pode decorrer de duas condições: esforço de um ou de alguns indivíduos, ou mera sorte. Abordar uma menina com um tiro na cabeça é simples, ela precisa ser operada. Mas como fazer com lombalgias (a segunda causa mais freqüente de absenteísmo ao trabalho nos EUA)? E os tumores, aneurismas e demais patologias neurocirúrgicas de caráter eletivo? Apenas com redes de atendimento coordenadas e integradas é possível garantir o atendimento de todos, entretanto, até o momento não há vestígio deste tipo de organização no sistema de saúde fluminense.

6. Errou a secretaria de segurança que permite que pessoas tenham e utilizem armas de grosso calibre e que até o momento não apresentou o responsável pelo disparo. O que matou a menina não foi à falta do Dr. Adão, ele poderia mesmo tê-la operado e o desfecho ser trágico, como foi, não temos garantias, a lesão inicial já era suficientemente grave. Claro que o atraso no atendimento não ajudou, mas a lesão inicial foi decorrente da violência de nossa cidade, haja vista que mais 04 foram vitimados somente nos últimos dias, sem a participação do Dr. Adão. Até o momento nenhum responsável foi apresentado. Vivemos numa cidade violenta, que dá pouco valor a vida alheia e permeada pela ineficiência policial e pela certeza da impunidade.

7. A imprensa, por fim, tem de penitenciar-se por seus erros. Ao abordar o caso se rendeu a idéia que o Dr. Adão é o inimigo público número 1. Não é, embora o seu ato tenha suscitado este tipo de raciocínio e ele certamente está pagando por sua escolha, e certamente será julgado por seus atos, mas enquanto ele é crucificado sozinho, no melhor estilo boi de piranha, o restante da boiada de responsáveis está passando incólume, alguns até, como o prefeito, com voz ativa na mídia para desferir impropérios contra o doutor, desviando a atenção da sua omissão diante da resolução 100 do CREMERJ. O próprio conselho, associado ou não ao sindicato dos médicos, teve em 2012 diversas ações em defesa da medicina pública, alertando para os riscos envolvidos na terceirização do atendimento, que no entender do STF é ilegal, e na carência de profissionais na rede.

Raramente a imprensa repercutiu estas ações, mas sempre deu grande espaço as versões oficiais, mesmo quando elas não tinham respaldo na realidade, como no caso em questão. Eu não vi, em nenhum momento, a imprensa confrontar o prefeito e sua secretaria de saúde pelo não cumprimento de uma resolução do CREMERJ que tem força de lei (o conselho é uma sucursal de uma autarquia federal cujo objetivo é regulamentar a atividade médica). Assim, não sei se de forma deliberada, ou meramente por uma miopia do seu papel, a imprensa tem se comportado como "chapa branca", um púlpito onde os governantes discursam, mas nunca dialogam. Ainda ontem o jornalista Elio Gaspari faz referência ao Dr. Ribeiro Neto, que se lamentou por não ter recorrido à imprensa para denunciar o desmonte da saúde pública. A dúvida que temos hoje, é se há voz para os que querem discordar do governo ou se todos são colocados no balaio de golpistas, corporativistas, vagabundos, delinqüentes, etc. Desde o ano passado tenho observado uma série de colegas buscando a imprensa para denunciar o que vive em seus cotidianos de médicos de unidades públicas, especialmente federais, mas os resultados em relação a publicação ou repercussão é desanimador. Sou médico, funcionário público federal, mas já atuei em todas as esferas. Sou filho de médico, também funcionário público, hoje aposentado (recebendo o miserável salário de menos de R$2000,00 após ter dedicado 33 anos ao serviço público estadual). Procuro executar minhas tarefas dentro dos meus compromissos éticos e profissionais, não tenho nem de longe o brilho de um Ribeiro Neto, por isso mesmo não tem a ilusão de que isto venha a ser publicado. Compreendo a revolta das pessoas diante de casos como o de Adrielly, mas não posso suportar generalizações e declarações referindo-se aos médicos como "máfia de jaleco", que ouvi na imprensa me motivaram a escrever esta carta. Temos maus médicos, maus carteiros, maus policiais, maus jornalistas, etc. Até mesmo bons profissionais estão sujeitos a maus passos e devem assumir suas responsabilidades, mas condenar uma maioria de bons profissionais por erros alheios e eximir de culpa os co-autores do delito é inaceitável. Sou médico, como já disse não me sinto especial por isso. Escolhi minha profissão como todo mundo, e a executo como todo mundo, procurando fazer o melhor possível, às vezes eu consigo, às vezes não, como todo mundo. Mas não economizo meu esforço. Conheço muitos colegas que compartilham desta conduta, por isso, só por isso exijo respeito a minha profissão, não somos vilões e nem mocinhos, não salvamos e não matamos, só trabalhamos, cuidamos, ajudamos, nada que qualquer outro profissional não faça. Solicito somente que casos isolados sejam tratados conforme sua individualidade. Milhões de pessoas são atendidos pela rede pública de saúde, pelo menos alguns dependem quase que exclusivamente dos esforços de profissionais, médicos ou não, e nenhuma linha é publicada, nenhuma generalização é feita. Respeitem-nos, não somos santos nem demônios, somos apenas.
Adão, afinal, não deu-nos apenas o pecado, mas ao originar Eva, deu-nos toda a dimensão da humanidade, da diversidade e do amor.

Atenciosamente, Alberto Vieira Pantoja.